Diabo na Cruz anunciam o fim da banda

Na passada terça-feira, dia 21 de maio, os Diabo na Cruz, uma das bandas portuguesas que marcaram a última década, publicaram um comunicado nas redes sociais:
Os Diabo Na Cruz anunciam que, após 11 anos de existência, irão terminar a carreira da banda no final da Tour deste ano. Entretanto, o grupo concluirá a Tour sem a presença do seu vocalista, guitarrista e compositor, Jorge Cruz, que em breve fará um comunicado. Os Diabo Na Cruz agradecem a todos os que os apoiaram ao longo da carreira, com especial destaque para os fervorosos fãs da banda com quem estabeleceram um vínculo inesquecível. A obra de Diabo Na Cruz ficará registada em 4 álbuns e 1 ep de originais, 1 álbum ao vivo e centenas de concertos por todo o país. A agenda da Tour de 2019 será actualizada brevemente.

Posteriormente, o vocalista, guitarrista e compositor Jorge Cruz - que será substituído por Sérgio Pires e Daniel Mestre nos últimos concertos - divulgou uma mensagem dirigida aos fãs do grupo musical:
Uma vez tive um sonho. Era um sonho no qual uma multidão saltava, levantava os braços, sorria e dançava ao som de bombos, ritmos populares e melodias que lembravam qualquer coisa de antigo, sobre o qual sentiam pertença, mas que acabavam agora de reconhecer, como se fosse a primeira vez.

Uma vez tive um sonho. Era um sonho no qual um mar de gente se expressava como num concerto de rock mas ao bater palmas, batia as palmas da chula e do vira, ao cantar em uníssono, cantava coisas como “Ó ai meu bem”, “Ai é tão lindo”, “Ma-ma-maria” ou “Roque Popular!"

Uma vez tive um sonho. Era um sonho em que o passado e o futuro se confundiam, como se houvesse um fio condutor. Era um sonho no qual a vergonha se transformava em orgulho, o desprezo em apreço, o esquecimento em memória, a melancolia em celebração.

Uma vez tive um sonho. Era um sonho que era música, mas que era música sobre música. Sobre música portuguesa. Porque é que a música portuguesa se distanciava tanto da música portuguesa? Com que linguagem seria possível uni-la, na sua raiz, a uma vivência actual, diária, física, e a uma experiência celebratória, livre de preconceitos? Com que ingredientes seria possível torná-la abraço e ruptura, convite e confrontação, memória e novidade?

Uma vez tive um sonho. Era um sonho sobre música portuguesa. Era um sonho sobre terras e paisagens de Portugal. Era um sonho sobre pessoas daqui. Para ser sincero, era um sonho sobre mim. Mas só era sobre mim, na medida em que tinha de ser sobre alguém, de modo a poder tornar-se de qualquer pessoa. Também era um sonho sobre personagens. Algumas delas, personagens com quem era preciso ajustar contas: o Shô Gonçalves, a Glória Margarida, os Mensageiros da Luso-Tempestade, o Mirone, a Beata, o Escriba d’Ouro, o Macaco de Imitação.

Uma vez tive um sonho. Era um sonho que era uma história. Começava com um gangue em cima do palco. Um gangue com uma missão. Um gangue a furar o silêncio, a varrer o país, a atalhar mais além. Um gangue que era a sua própria lei e, de terra em terra, cantava a canção de sermos a maré cheia. Um gangue na rebarbadora que trabalha todo o ano, a levar malhas e batidas de fazer rodopiar um transmontano. Um gangue a artilhar o canto para fechar as feiras, a erguer casas caiadas com raízes neste chão que, quando os mares aqui chegassem, não iriam, não. Um gangue que sabia com que linhas se cosia, que via à frente portadas para um mundo a começar. Não vivia na Saudade. Não esperava o Desejado. Nem se apoiava em parteiras de Abril para bailar nova canção. Era um gangue à procura de qualquer coisa de real. À procura de ouvir o bater do coração de Portugal.

Uma vez tive um sonho. Era um sonho que era uma história. Tinha várias personagens e a personagem principal era a Lebre. A Lebre corria. Corria desenfreada a um ritmo diferente do pelotão. No limite do esforço e da ambição. Sabia que meio gás não servia. Só calor e entrega em noites ávidas. Rebelião de febre, bombos, suor e lágrimas. Corria. Corria, mas corria sem interesse pela meta. Corria até não ter mais fôlego. Corria até não ter mais que correr. Até não ter mais que dizer. Corria até concluir o seu trabalho. Então, era sabido, retirar-se-ia, como qualquer lebre. Deixaria o pelotão passar, a corrida seguir a seu ritmo. Não teria sequer necessidade de saber quem ganhava ou perdia.

Uma vez tive um sonho e esse sonho tinha um fim. Era um fim que vinha anunciado desde o ponto de partida. A obra suada seria bem assentada na terra da firmeza e da loucura. Seria bem boa a nossa hora. Depois, daríamos meia volta, uma volta, para o festim acabar. Na hora da partida, a lebre fecharia a loja. E os novos, com saberes de outros povos, livres e minuciosos como ourives, herdariam a nossa guerra.

Uma vez tive um sonho. Foi um sonho sincero e incondicional como este momento. Um sonho cumprido. Um sonho que me importa para sempre honrar. E, para mim, hoje honrá-lo, é não lhe tocar. É ter a lucidez de não lhe acrescentar mais nada. De não o mudar. De não o transformar numa versão de si próprio menos feliz, menos mágica, menos especial.

A história começa assim: “Era sua a arma de três canos...” e termina assim: “...seja terra em Portugal.” São 50 canções. Qualquer dúvida sobre esse sonho que alguém possa alimentar, procurei deixá-la respondida algures numa letra dessas 50 canções. É uma questão de procurar.

Resta-me agradecer do fundo do coração aos elementos de Diabo Na Cruz que sonharam comigo e tornaram este sonho possível: Bernardo Barata, João Pinheiro, B Fachada, João Gil, Manuel Pinheiro, Márcio Silva e Sérgio Pires. A toda a equipa que nos acompanhou na estrada: Daniel Mestre, Rui Rodrigues, Nuno Roque, Paulinho Ribeiro, João Paulo Dias, Tiago Gomes De Sousa, João Samuel Tereso e Nsekt Badmood. A quem trabalhou os nossos discos em estúdio: Nelson Carvalho, Eduardo Vinhas, Tiago Gomes De Sousa e Pedro Gerardo. A quem contribuiu com artes, ilustrações, vídeos e design: Paulo Ribeiro, Vasco Viana, Vera Marmelo, Pedro Leitão, Nuno Fazenda, André Príncipe, Rita Carmo, Joana Faria, Tiago Velhinha Pereira, Ana Saramago, Adriana Montes, Marco Oliveira, Daniel Mota, Filipa Braga Cruz, Ana Afonso, Joana Linda e Roda Dentada. A quem nos editou: FlorCaveira, Mbari Música e Sony Music Portugal. A quem nos promoveu: Inha e Maria Luis. A quem nos agenciou e representou: PRODUTORES ASSOCIADOS e Pedro Santos. E a todos aqueles (muitos) que nos foram ajudando, com isto e aquilo, ao longo da viagem.

Finalmente, agradecer-vos a vós, fãs de Diabo na Cruz. Ainda hoje me custa acreditar nos quilómetros que alguns fizeram para nos ver pela enésima vez. Observar os vossos rostos felizes à frente do palco foi um regalo difícil de descrever. Que espectáculo! Gosto de imaginar que lembrarão este tempo com carinho. Com o mesmo carinho com que foi sonhado. Quem sabe se um dia não nos voltamos a encontrar, algures por aí, no caminho que ainda houver para percorrer.

Uma vez tive um sonho, Era um sonho que tinha um fim. Mas os sonhos não têm fins como as restantes coisas palpáveis da vida. São sonhos. Saem de nós como nuvens de fumo e ficam a pairar à volta da terra, enquanto houver quem goste de olhar para eles.

Agora, chegou a hora de ir sonhar outros sonhos. Se possível, sonhos que ainda não existam em lugar nenhum. Nuvens com um formato novo qualquer. Tipo assim... ou assim...

Uma vez tive um sonho. E que sonho! Foi um sonho e pêras...
Agora, chegou a hora de avançar.

Até sempre meus amigos que o festim vai acabar.

Fecha a loja.

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