Sara Barros Leitão assume-se como «testemunha» de Sofia Arruda no caso de assédio sexual


Sofia Arruda foi entrevistada recentemente no programa «Alta Definição» e revelou que foi vítima de assédio sexual por «parte de uma pessoa com muito poder dentro de uma estação de televisão, de uma produtora». A atriz recusou as propostas menos profissionais e acabou por ser afastada do canal durante alguns anos.
Sara Barros Leitão publicou um longo texto nas redes sociais, no qual defendeu a amiga e confirmou o testemunho: «Primeiro, à Sofia: acabei de ver a entrevista e não fiquei surpreendida em nenhum momento. Foste como és: inteira, total, imensa, honesta, generosa. Que sorte tem quem te tem perto. Deixo tudo o que tenho para te dizer para as nossas conversas, que, por força da vida, são cada vez mais espaçadas, mas que nem por isso deixam de ser cheias de sinceridade, sororidade e admiração. Depois, a quem não é do meio: O que a Sofia disse na entrevista é de uma coragem impossível de caracterizar. A Sofia começou a trabalhar com 11 anos na indústria televisiva, eu comecei aos 16. Encontrámo-nos no fim das nossas adolescências e foi uma amizade como um íman. Também eu cresci a ver a Sofia na televisão, e quando a conheci, foi impactante para mim», começou por escrever no passado dia 18 de abril.
«A Sofia tinha uma maturidade fora de série, e um profissionalismo indescritível. Com ela, cresci como actriz e ser humano. Mas também aprendi como ser mulher, actriz, jovem e trabalhar em televisão. A Sofia trazia uma frontalidade desarmante em situações desconfortáveis. Foi com ela que aprendi a expressar alto e no momento certo, com um tom de brincadeira mas ligeiramente acusativo, o que era preciso dizer para que as situações ficassem por ali. Ainda hoje acho que essa é a minha arma mais poderosa e tenho de lhe agradecer por me ter ensinado isso sem o saber», recordou.
Sara Barros Leitão deixou «alguns contributos para a reflexão»: «Quando uma mulher conta uma experiência como esta, a primeira coisa que devemos fazer é não duvidar dela. Essa dúvida não deve ser alimentada pelo facto de a pessoa ter demorado anos a falar. Uma experiência de assédio não prescreve. Vive no corpo da vítima até à sua morte. Nem todas as pessoas conseguem reconhecer imediatamente o assédio. Nem todas as pessoas têm uma estrutura pessoal, mental, emocional, profissional para o denunciarem. Nem todas as pessoas conseguirão, alguma vez, denunciá-lo. E a prova de que a sociedade não está preparada para apoiar as vítimas demonstra-se precisamente neste tipo de comentários machistas, sexistas e misóginos de desvalorização da experiência. Não caiamos na tentação colectiva de pedir que a pessoa diga o nome do agressor. Primeiro: não precisa. A vítima só deve contar até onde estiver preparada para contar. Não é o facto de haver um nome que irá alterar o que aconteceu. Segundo: apesar de o nome não ser público, pelo menos por enquanto, não significa que não se saiba quem é. Como dizer isto de forma clara? Toda a gente no nosso meio sabe quem é. De colegas a equipas, de canais a comunicação social. O assédio é uma coisa que acontece às mulheres diariamente. No contexto de televisão, vem acompanhado de outras camadas que tornam a questão interseccional e muito complexa. Primeiro, é feito por pessoas em cargos de chefia, logo é uma situação hierárquica, com consequências graves, depois, as pessoas (actrizes ou actores, neste caso), são conhecidos do público, não terás apenas de lidar com a reação de colegas e pessoas próximas, tens de lidar com um país inteiro, há uma imprensa abutre que se alimenta disso e que te quer sugar até ao tutano, e depois está montada uma infraestrutura de impunidade dentro das produtoras e dos canais, que protege os agressores e deita fora as vítimas. O #metoo não é uma moda. É um movimento colectivo de denúncia de situações de assédio na indústria audiovisual que precisa de três coisas: 1. de alguém que tenha a coragem e a estrutura para começar; 2. de que todas as outras vítimas saiam do silêncio e se posicionem; 3. de que a sociedade contribua criando uma rede de apoio e solidariedade, respeitando o tempo das vítimas, respeitando as suas histórias, e, sobretudo, resistindo à sórdida tentação de querer narrativas mais violentas, mais trágicas, o que acaba por desvalorizar as micro-agressões, deixando, assim, centenas de vítimas a sentir-se ainda pior com o que lhes aconteceu por não encontrarem, sequer, ali espaço para a sua história. É possível que a entrevista da Sofia ainda não seja o gatilho que vá despoletar o movimento #metoo em Portugal. Mas teremos de chegar lá um dia. A história da Sofia é real, sou dela testemunha. Conheço outras. Conheço muitas. Não desanimemos se ainda não for desta. Acima de tudo, peço-vos para não descredibilizarem qualquer relato que entretanto surja, com o argumento de que “vem a reboque”, ou que “passou demasiado tempo desde a primeira pessoa a denunciar, porque é que não falou logo?”. Volto a repetir: as pessoas têm o seu tempo e o seu momento. Quando rebentou o movimento #metoo, foram vários os/as jornalistas em Portugal a telefonarem-me para ver se eu podia contar alguma história ou colocá-los em contacto com alguém. Não o fiz na altura e não o vou fazer agora. As vítimas procurar-vos-ão se quiserem falar. Aos meios de comunicação peço que encarem este assunto com a seriedade e cuidado com ele tem de ser tratado. São vidas, são pessoas, são dores e são traumas».
Em conclusão, a eterna Jennifer de «Morangos com Açúcar» dirigiu-se aos seus colegas de profissão: «Há quem tenha medo que o medo acabe, escrevia Mia Couto. E sei que, também nós, temos medo do que pode vir aí. Temos medo de ouvir nomes de amigos e amigas, de pessoas que gostamos. Temos medo de perceber que tudo aconteceu debaixo dos nossos olhos e que fomos nós que escolhemos não ver. Temos medo das represálias se nos posicionarmos em solidariedade. Tal como não sabemos as vidas das vítimas, também não sabemos as vidas uns dos outros. Nem toda a gente irá querer falar publicamente, nem toda a gente se quererá posicionar em solidariedade, nem toda a gente está, sequer, no momento de o poder fazer. Respeito todas as decisões. Contudo, todas e todos sabemos do que estamos a falar. Sabemos que o assédio hetero e homossexual existe no nosso meio. Pela minha parte posso dizer-vos que todas as pessoas que quiserem falar terão a minha maior solidariedade e que poderão contar comigo. Às vezes temos mais medo do que aquilo que na realidade acaba por acontecer. É possível que isto leve a uma grande reviravolta na forma como a nossa indústria está habituada a operar. Mas se todos sabemos como isto está podre, não era até bom que assim fosse? Há outras formas de trabalhar, há outras formas de produzir, há outras formas de se relacionar, há outras formas de chefiar. Exijamos isso».

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